Uma Palavra aos Ecólogos
Reformar a ecologia para lutar contra a perda de biodiversidade
João Aldeia examina as potencialidades e o papel da prática científica da ecologia em tempos de catástrofe ambiental continuada.
A perda acelerada de biodiversidade é um dos problemas mais importantes do nosso tempo, colocando em causa a continuidade da vida como a maioria de nós a conhece. Diversos cientistas, muitos deles ecólogos, têm dedicado o seu tempo a investigar formas de conservar a biodiversidade. Contudo, uma parte considerável do seu trabalho não contribui suficientemente para este objectivo pois, de formas variadas, valida modos insustentáveis de interagir com a natureza. Isto ocorre mesmo que não seja essa a intenção dos ecólogos. Neste cenário, o objectivo deste texto é apresentar algumas sugestões preliminares para uma reforma da ecologia que tornem esta disciplina científica capaz de efectivamente lutar contra os problemas ecológicos dos nossos dias.
A aceleração na perda de biodiversidade começou com a colonização europeia da massa continental que ficaria conhecida como América, sendo este o momento histórico em que começou a modernidade capitalista. Desde então, os seres humanos que possuem ou gerem (várias) propriedade(s) e habitam, maioritariamente, no Norte Global desenvolveram meios técnicos e científicos que lhes permitiram apropriar-se da natureza e subjugá-la aos seus interesses. Apesar dos discursos sobre o Antropoceno estarem agora em voga, a perda de biodiversidade e outros problemas ecológicos não resultam da acção de uma humanidade abstracta. Estes são, antes, o resultado das acções de grupos humanos concretos, capazes de transformar profundamente a natureza, perturbando a atmosfera, espécies e ecossistemas.

Na modernidade capitalista, os seres humanos foram separados da natureza, usando-a como um mero meio para garantir um estilo de vida baseado na urbanização, na industrialização, no consumo e na circulação rápida entre locais geograficamente afastados. Historicamente, estes comportamentos traduziram-se na desflorestação, desertificação, extracção e exaustão de fontes de energia, aumentos de toxicidade e de radioactividade, subida do nível das águas marítimas, aumento de emissões de gases de efeito de estufa, alterações climáticas e proliferação de resíduos indesejados. Como consequência de tudo isto, nos últimos séculos, a extinção de espécies acelerou de modo significativo face ao que seria previsível no tempo geológico.
A perda de biodiversidade é também um problema político pois é uma consequência dos estilos de vida humana e não-humana que são estimulados na modernidade capitalista. É um problema ‘político’ no sentido que diz respeito a conflitos em torno da forma como são distribuídas possibilidades de vida e de morte (biológicas e culturais) entre diferentes grupos e indivíduos.
Isto exige que os cientistas que estudam este problema pensem sobre o que fazem de modos diferentes. Este é, claramente, o caso da ecologia, que é a disciplina científica mais directamente ligada ao estudo da biodiversidade. Tal como outros cientistas, os ecólogos precisam de se esforçar bastante mais para fazerem a ligação entre as suas actividades profissionais e os processos histórico-políticos mais amplos da modernidade capitalista.
Para se opor de forma eficaz à perda de biodiversidade, a ecologia tem de evitar tornar-se num recurso técnico e científico ao serviço de empresas que usam (de forma selectiva) o conhecimento científico para melhor se apropriarem da natureza e, assim, aumentarem os seus lucros. Desde o início da modernidade capitalista, as práticas técnicas e científicas são fundamentais para criar conhecimento e meios técnico-materiais que são usados para a apropriação da natureza. Este era, afinal, o objectivo explícito da ciência moderna, que, como o filósofo Descartes (1596–1650) defendeu, deveria tornar os seres humanos (brancos, Europeus, homens, detentores de propriedade privada) «senhores e possuidores da natureza».
Em muita da investigação científica realizada por ecólogos, a forma mais comum de abordar a perda de biodiversidade é perfeitamente coerente com este propósito de mestria e apropriação técnica e científica do mundo para o benefício imediato de (alguns) seres humanos. As exigências das entidades financiadoras desta investigação, sejam elas públicas ou privadas, contribuem muito para esta postura. Estas entidades consideram cada vez mais crucial que o conhecimento científico que pagam seja demonstravelmente útil para a sociedade. Na maioria das vezes, esta utilidade social é definida de acordo com interesses privados e, sobretudo, empresariais, sendo excluídas outras formas de conceber o bem público.
Os projectos de investigação científica realizados por ecólogos são desenhados para desenvolver conhecimento e instrumentos técnicos e científicos passíveis de aumentar o bem-estar de empresas e/ou de cidadãos. Dado que, ao longo das últimas décadas, o ‘cidadão’ foi reduzido ao estatuto de consumidor e nada mais, muitos dos responsáveis por estas entidades financiadoras e investigações pressupõem a existência de uma confluência de interesses entre empresas e indivíduos. Neste quadro mental, o bem-estar individual depende da capacidade de canalizar o máximo possível de esforço de todos os elementos de uma sociedade para melhorar o estado da economia, i.e., para aumentar o lucro empresarial. Quer as empresas, quer estes cidadãos-consumidores precisam de aumentos de produtividade agrícola, de formas sustentáveis de produção energética e de um fluxo contínuo de matérias-primas que serão transformadas em mercadorias (tais como fitofármacos e medicamentos).
Explícita ou implicitamente, os objectivos deste tipo de investigação estão alinhados com os objectivos económicos de empresas variadas. Logo, estão também alinhados com os objectivos económicos do Estado, que, ora de modo envergonhado, ora de forma ufana, assume a função de proteger estes interesses empresariais.
Tais projectos de investigação científica visam tornar o capitalismo ‘verde’. Uma cor adequada que faz pensar, simultaneamente, em preocupações com a sustentabilidade ambiental e no dólar: ambos devem juntar-se num ciclo virtuoso de apropriação sábia da natureza. Esta apropriação sábia, cientificamente aconselhada, visa manter a natureza (ou, pelo menos, uma parte desta) viva e saudável para que empresas possam continuar a fazê-la trabalhar para os seus interesses.
O problema desta lógica é que supõe a inevitabilidade e/ou preferência por formas de interacção com a natureza que levam à perda de biodiversidade acelerada. ‘Verde’ não é uma ruptura fundamental com a modernidade capitalista, ou seja, com a insustentabilidade ecológica que lhe está associada. É visível, por exemplo, nos solos saturados de cobre onde crescem produtos agrícolas com certificação ‘bio’, muitas vezes à custa do trabalho de indivíduos em condições próximas da escravatura. Pode ser visto também na panaceia da energia eléctrica, tão frequentemente apresentada como a solução para a emissão de gases de efeito de estufa, mas obtida à custa do trabalho escravo de crianças Congolesas em minas de cobalto e armazenada em baterias com uma vida útil curta e difíceis de reciclar. A maioria dos ecólogos (mas, em definitivo, não só eles) trabalha com um estado de espírito caracterizado pela urgência. Os muitos cientistas que trabalham em instituições universitárias com vínculos contratuais precários têm de pagar as suas contas. Tanto precários quanto investigadores com vínculos laborais estáveis têm de correr permanentemente atrás do próximo financiamento para não tropeçarem no jogo da avaliação científica baseada em métricas. E os projectos de investigação científica exigem resultados imediatos. Contudo, estimular a reflexividade dentro da ecologia não é menos urgente.
Há uma necessidade inadiável de pensar e falar sobre a ecologia de modo franco para que os ecólogos se tornem capazes de estar atentos a coisas que, historicamente, ignoraram. Para se oporem à perda de biodiversidade contemporânea, os ecólogos precisam de pensar bastante mais nas ligações entre o que investigam quotidianamente e as estruturas histórico-políticas mais vastas no seio das quais esta investigação decorre. Isto implica reflectir sobre a forma como realizam a sua investigação, sobre os motivos pelos quais a realizam e sobre os usos possíveis desta pesquisa.
Enquadrar a investigação em ecologia no sistema histórico-político mais amplo tem exigências pragmáticas. Uma delas é uma discussão franca sobre semântica. Como a filósofa Donna Haraway defende, «importam as histórias que contamos para contar outras histórias; importam os conceitos que pensamos para pensar outros conceitos». A linguagem da ecologia precisa de ser descolonizada. Entre outras coisas, precisa de libertar-se da forma de conceber o mundo promovida pela economia neoclássica que, nas últimas décadas, foi acriticamente incorporada por muitos ecólogos, bem como pelos indivíduos responsáveis pela elaboração de políticas públicas variadas, incluindo as que influenciam o financiamento da investigação científica.
Isto é, claramente, exemplificado pela vulgarização da expressão ‘serviços dos ecossistemas’, que é, em grande medida, impulsionada pela linguagem das políticas públicas e das entidades financiadoras da investigação científica. Por um lado, esta expressão faz pensar nas naturezas não-humanas como coisas que podem ser apropriadas para prestar ‘serviços’ (uma metáfora que provém da economia neoclássica) a (alguns) humanos. Por outro lado, ela legitima o desenvolvimento de práticas concretas através das quais estas naturezas não-humanas podem ser apropriadas.
O conceito de ‘serviços dos ecossistemas’ não rompe com a lógica de dominação e apropriação da natureza. Antes, ele intensifica esta lógica, reduzindo tudo o que fazem as espécies e os elementos abióticos a um conjunto de benefícios gerados para formas de vida humana concretas. Estes benefícios são, por definição, quantificáveis e prestados a actores concretos. A quantificação dos serviços dos ecossistemas é fulcral para que estes possam cumprir o seu único propósito: o estabelecimento de procedimentos de pagamento aos proprietários dos lugares onde estes serviços ocorrem.

Estando o planeta administrativamente dividido em propriedades de actores concretos, as actividades ecológicas, biológicas e físicas realizadas por espécies e elementos abióticos localizados numa dessas propriedades são apropriadas por quem a detém. Isto torna os serviços dos ecossistemas em activos privados, transformando actividades que não são realizadas para o interesse de seres humanos em serviços prestados a estes proprietários (por exemplo, a polinização, a circulação de água potável ou o sequestro de carbono). Por sua vez, estes proprietários podem (ou não) vender esses benefícios a outros seres humanos.
Esta possibilidade de venda pressupõe a criação de um mercado de serviços dos ecossistemas no qual seja calculado o valor monetário de cada um destes serviços. Esta atribuição de valor permite que proprietários de terra vendam não só o que aí é propositadamente produzido (frutas, hortícolas, etc.) como também actividades aí realizadas por entidades não-humanas para as quais estes proprietários não contribuem (tais como o sequestro de carbono ou a polinização). Os compradores dos resultados destas actividades compram, portanto, actividades naturais como se fossem mercadorias.
A lógica do pagamento de serviços dos ecossistemas vigora mesmo naquelas situações em que nenhum pagamento factual ocorre (ainda) por esses serviços. A quantificação de actividades não-humanas na forma de serviços cria a base necessária à sua valoração monetária como primeiro passo do estabelecimento de um mercado que permita a sua compra e venda. A redefinição destas actividades como serviços quantificáveis não chega para que eles sejam comprados e vendidos, mas é o primeiro passo necessário para essa compra e venda. Mais ainda, esta redefinição apenas faz sentido na exacta medida em que tem como objectivo criar as condições para que os serviços dos ecossistemas sejam pagos.
É neste sentido que a linguagem dos serviços dos ecossistemas intensifica a lógica de apropriação e dominação da natureza por certos seres humanos. Ela é parte (e uma parte importante) de um processo geral de extensão da lógica mercantil a todos os aspectos da natureza. Neste quadro mental, só faz sentido preservar certas formas concretas da natureza se estas prestarem serviços a seres humanos. Isto significa que a importância de cada forma concreta da natureza (de cada espécie, de cada ecossistema, etc.) pode ser avaliada, o que permite decidir quão relevante é a sua preservação. A preservação das formas de natureza que não prestam serviços dos ecossistemas suficientemente valorizados torna-se, assim, irrelevante. É irrelevante pois empresários, representantes estatais e cientistas não concebem uma forma de transformar em lucro privado as actividades realizadas por essas espécies e elementos abióticos.
Em função disto, a forma de conceber a vida expressa pela linguagem dos serviços dos ecossistemas não é minimamente capaz de dar conta do que está em causa na perda de biodiversidade acelerada e, assim, combatê-la. A escala actual da perda de biodiversidade coloca a continuidade da vida de seres humanos e de espécies não-humanas em causa. O significado político, cultural, moral e ecológico disto é muito mais amplo e heterogéneo do que a semântica dos serviços dos ecossistemas dá conta.
Os ecólogos podem e precisam de fazer melhor do que isto. A semântica dos serviços dos ecossistemas bloqueia as transformações político-económicas necessárias para lutar contra a perda de biodiversidade. Limita a política a mais-do-mesmo, não contestando a modernidade capitalista. Na Grécia clássica, a forma de vida fundamentalmente política (o bios politikos) visava deixar uma marca durável no mundo através da acção (praxis) e do discurso (lexis), que deveriam estar em harmonia. A linguagem dos serviços dos ecossistemas não é compatível com discursos e acções capazes de promover a sustentabilidade ecológica.
Para lutar contra a perda de biodiversidade contemporânea, os ecólogos precisam de prestar muito mais atenção aos modos como os fenómenos que estudam se ligam às dinâmicas históricas e políticas da modernidade capitalista. Isto é um exercício difícil. Felizmente, os ecólogos não precisam de o realizar sozinhos e podem encontrar aliados noutros campos de conhecimento. Os ecólogos não precisam de se transformar em filósofos, historiadores ou sociólogos. Mas o sucesso na luta contra a perda de biodiversidade só é possível se os ecólogos prestarem atenção ao que a filosofia, a história, a sociologia e vários outros campos de conhecimento académico e não-académico têm a dizer sobre questões de vida e de morte. Compreender os processos de perda de biodiversidade sem uma tal atenção é tão inviável quanto compreendê-los sem dados científicos produzidos pela investigação ecológica.
Tal como aliados externos podem ser procurados, também pode ser promovido o aparecimento de aliados internos em programas de estudos graduados e pós-graduados em ecologia. A reforma da ecologia necessária para enfrentar a perda de biodiversidade acelerada apenas será possível se, desde a licenciatura, os futuros ecólogos tiverem a oportunidade de frequentar unidades curriculares transdisciplinares que agreguem contributos da filosofia, da história, da sociologia, da antropologia, da geografia, entre outras áreas do conhecimento. Isto forneceria aos futuros ecólogos ferramentas conceptuais úteis e, sobretudo, dar-lhes-ia uma abertura de espírito para enquadrarem sistematicamente o que fazem nas suas profissões nas dinâmicas histórico-políticas da modernidade capitalista.
Os ecólogos não podem evitar participar na política da perda de biodiversidade contemporânea. Mas podem escolher o lado em que estão nesta luta. Podem, de forma implícita ou explícita, ficar do lado do capitalismo verde, i.e., dos objectivos de empresas (e dos seus aliados estatais), ficando do lado dos problemas que estas geram. Ou podem tomar uma posição contra isto, juntando-se aos esforços daqueles que já trabalham para criar um mundo diferente.
João Aldeia, é sociólogo e tem-se dedicado a estudar questões do campo da ecologia política, em particular a perda de biodiversidade, e as interacções entre a humanidade e outras espécies.