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Editorial NºI

Poucaterra, acesso à terra, agroecologia e convivialidade.

Parece-nos indesmentível que para alguma gente há muita terra, mas que para muita gente não há terra nenhuma. E há pouca terra para muitas coisas. Há pouca terra para vogar à vontade e acampar (como sugere o texto da Selma Fosså neste número). Há pouca terra para a maior parte das nossas crianças conhecerem os bichos e as plantas e apaixonarem-se por eles. Há pouca terra para quem quer continuar a ter uma vida rural e há pouca terra para a possibilidade de alternativas saudáveis à vida urbana. Há pouca terra para o direito à auto-produção e subsistência fora do nexo salarial. Há pouca terra a ser cultivada por gente que possa cuidar dela. Há pouca gente que seja capaz de comprar terra ou ter acesso à sua abundância.

Por outro lado, parece-nos igualmente verdade que podemos e devemos viver com pouca terra. As cidades portuguesas, como todas as outras, vivem da extracção de nutrientes, vida animal, biomassa, e matérias primas de áreas que excedem em muitas vezes a biocapacidade de cada cidade. A natureza insustentável desta relação é óbvia, ainda que não seja claro quanto tempo pode durar. O conjunto de práticas que tem vindo a ser promovido com o nome abrangente de Agroecologia é capaz de produzir nutrientes e calorias saudáveis com menos área do que as práticas da agricultura industrial seriam capazes. Em comparação com estas, a Agroecologia precisa de pouca terra, ainda que precise de mais gente e de mais conhecimentos (como o texto do Afonso Fontoura em baixo descreve). Nesse sentido a Agroecologia combinada com o acesso à terra e relações laborais e de género justas (ver o texto da Rita Madeira sobre o assunto), é uma solução para revermos esta relação desequilibrada e patológica entre extracção e biocapacidade, mas também é uma oportunidade para revermos a nossa relação cultural com o trabalho, e a matéria e energia que usamos, de maneira a que possamos falar dessa relação com palavras mais bonitas do que «sustentabilidade» e «biocapacidade» (com um bocadinho mais do romance que o texto do Chris Smaje apregoa), uma nova relação que pode começar numa nova escola, como o texto da Cristina Cartaxo, sobre a exclusividade das escolas da floresta, convida a reivindicar. Existem muitas dúvidas em relação à real capacidade produtiva das práticas agroecológicas e também quanto às implicações políticas, económicas, e sociais de uma tal transição em larga escala, e não as queremos sossegar nem camuflar, queremos olhar para elas.

Também há muitas dúvidas sobre o que é que essa transição implica a nível pessoal para quem quiser participar mais na produção da sua própria comida e depender menos de uma economia essencialmente extractivista, altamente desigual e as mais das vezes cruel (para palavras mais duras, ver o texto do João Aldeia). Não é óbvio como suprir as necessidades de consumo que são de momento satisfeitas por essa carbo-economia, nem que necessidades é que são necessidades de facto. Não é óbvio o que é que se perde nesse caminho nem que dificuldades lá nos esperam. A maior parte de nós que o quer trilhar, confronta-se de repente com a sua própria ignorância prática, com a herança cultural de um certo desdém pelo trabalho manual e braçal, e com uma total dependência das competências de máquinas, braços e cabeças longínquas que nunca vamos conhecer. Qualquer caminho que diminua esta nossa dependência da carbo-economia é um caminho para precisarmos de menos terra e que pode ser enriquecido com aptidões, saberes, ofícios e celebrações que complementam e excedem a Agroecologia, e que estão ligados às necessidades de habitação, saúde, cultura e alimentação que foram terceirizados. Necessidades menos óbvias mas de importância insuspeita são as de criação de lealdades, afectos, cooperação e laços de interesse cruciais para a construção de vizinhança e comunidade alargada. Sem elas há pouca esperança de alcançar qualquer transição. Incluímos nelas a música, a dança, o teatro e todas as ficções orais, escritas ou desenhadas. A este grande conjunto chamamos, como Ivan Illich, convivialidade, a concretização da liberdade individual a partir da dependência interpessoal de uma comunidade. Suspeitamos que o acesso à terra diminuiu ao mesmo passo que diminuiu o nosso acesso às artes da convivialidade com que nos entretínhamos, nos alimentávamos, nos vestíamos e nos ligávamos uns aos outros sem precisarmos de cadeias globais de fornecimento (esse é o sonho que a Natasha Prévost esboça, mais à frente também). Para nós, aqui na Poucaterra, é cada vez mais difícil imaginar uma transição agroecológica sem uma transição cultural correspondente, seja a que escala for. E vamos tentar ser fiéis à imaginação.

Não comungamos de nenhuma ideologia claramente definida e não precisamos de nos identificar com a posição dos artigos para desejarmos publicá-los, desde que estes sejam reflexo da curiosidade sobre como enfrentar a transição que se encapela no horizonte. Não sabemos se essa transição acontecerá por um milagroso alinhamento das vontades ou forçada pela escassez alimentar e desmoronamento das instituições de que dependemos para comer. Mas, mais do que nos parecer inevitável do ponto de vista ambiental, metabólico, socio-ecológico, a transição parece-nos desejável do ponto de vista da concretização das aspirações humanas de uma vida cheia de relações e trabalho com significado na companhia do resto das maravilhas naturais.

É sobre as dúvidas deste caminho, sobre as imaginações da sua trajectória, e sobre os saberes úteis para o trilhar, que a Poucaterra quer pensar, dar a conhecer, e pôr em conversa. E talvez um dia, a meio do caminho seja difícil imaginar um mundo em que pouca gente tem muita terra e muita gente não tem nenhuma.

Duas notas antes de começarmos. A primeira é que decidimos aliviar as páginas de todas as notas de rodapé e movemos as referências para o fim da revista, organizadas pela ordem em que aparecem. As fontes das citações e referências estão lá explicitadas, assim como a fonte e explicações de afirmações avançadas como factos, ou de expressões pedidas de empréstimo que foram italícizadas. A segunda é de que os textos estão feitos há muitos meses, alguns há mais de um ano. Como nunca fizemos isto, achámos que assim que tivéssemos os textos teríamos uma revista. Parece que não é assim que funciona. Idealmente os textos voltariam a quem os escreveu para uma actualização, mas essa tarefa já estava acima das nossas forças e emoções. Deste modo, qualquer inconsistência estácio-temporal entre os textos e o presente é exclusiva responsabidade da Poucaterra.

Este número é dedicado a todos os que viram a criança em Omelas.